Abnóxio

Poesia de Ademar Santos - em reconstrução
Retrato de Ademar Santos feito à mesa de um café - na Brasileira ou no Moçambique -, em 1973, pelo Padre Nunes Pereira.
  • Improviso sobre um tema de Louis Armstrong...

    Se vivesses
    um pouco mais perto
    do mundo
    dirias talvez
    que a felicidade não tem dias
    mas átomos apenas
    e que não há
    na vertigem dos sonhos
    costas mais largas
    do que as costas
    da eternidade
    se vivesses
    um pouco mais perto
    do mundo
    talvez soubesses
    que o mundo começa e acaba
    no olhar com que o abraças.

  • Improviso sobre o fogo em que ardemos...

    Como Marley
    poderia também dizer-te
    No Woman No Cry
    as lágrimas não abrem as janelas
    que deixámos fechar
    e há manhãs de sumo de laranja
    que não voltaremos a beber
    as saudades tropeçam no destino
    e nós tropeçamos nas saudades
    sobra ainda esta fuligem de fogo
    que nos sufoca por dentro
    como se continuássemos a arder.

  • Improviso sobre um auto-retrato...

    Já fui todas as palavras
    que não ousaste dizer
    as mãos algemadas
    numa culpa antiga de gestos
    uma quase impotência
    finjo que não vejo
    o fogo da distância tão próxima
    o fogo e o vento gelado
    e subo a todas as montanhas
    para uivar com os lobos
    não lamento nada
    escrevo apenas
    para que te ouças.

    Que dizem as imagens do que fomos? Que diz esta imagem do que fui? Não importa quando. A memória que retemos das pessoas começa sempre por fixar imagens. Depois, talvez, palavras. Por fim, as vozes. E, porém, são as vozes que prolongam por mais tempo a nossa identidade. Não há duas vozes iguais. Talvez, por isso, a música resista melhor do que a poesia à erosão do próprio tempo. A eternidade dos sons pode sempre muito mais do que a eternidade das palavras. As imagens, essas, estão sempre a mudar. Nós é que, frequentemente, não reparamos. Continuo a falar para ser ouvido. E, se possível, vivido...

  • Improviso para não desistir do círculo...

    Há muitos anos que acredito que
    as mentalidades hão-de mudar
    acho mesmo que nasci a acreditar que
    as mentalidades hão-de mudar
    tenho a certeza de que morrerei a acreditar que
    as mentalidades hão-de mudar
    mudarei?

  • Improviso quase para desenfeitiçar...

    Nada é mais escuro do que a noite
    que me ofereces e porém mais claro
    tenho antípodas no pensamento
    que te viaja
    entre todos os solstícios.

  • Improviso para desdizer....

    Não invento luzes no teu corpo
    nasci desapalavrado para evidências.

  • Improviso oficinal...

    Desaparafuso-me do pensamento em emoções
    as peças já não me encaixam.

  • Improviso confidencial...

    Confidencias-me diariamente
    o medo e o orgulho do sofrimento
    lentamente
    desapossas-te do corpo que te serviu
    e agora serve apenas
    espantosa viagem essa
    do alto-mar para o cais dos espinhos
    o universo em ti todo a nado
    metáfora de uma paixão talvez sem falhas.

  • Improviso a brincar com palavras e os seus sentidos...

    Toda a vida
    todavia
    toda a vida.

  • Improviso breve para pedra tumular...

    O meu universo foi estreito
    só teve dias de 24 horas
    e morri na navalha de todos os deuses.

  • Improviso para tatuar futuros...

    Ofereces-me as costas
    para que eu escreva nelas
    frágil território para mãos
    tão carentes de narrativa
    deixa-me reiventar o dicionário e a gramática
    soletra-me depois.

  • Improviso com partitura...

    A tua voz vem de muito mais longe
    para trás ficam
    os limites que te imponho
    quando ainda cantavas livremente
    e não obedecias a partituras
    entras-me agora por todos os ouvidos
    e serpenteias-me os braços
    em direcção ao peito
    o único alvo que não erras.

  • Improviso sobre uma imagem...

    Donde sai de ti
    o pensamento que finge não ver?
    onde começam e acabam os teus braços
    e as tuas pernas
    e onde se cruzam?
    há um sinal no horizonte do corpo
    que quase te desvenda
    um enigma em forma de vela
    uma insinuação de género
    uma sombra de antiquíssimo pudor.

  • Improviso em forma de haiku para me viajar subúrbio...

    Já me circum-naveguei tantas vezes
    que perdi a noção do centro histórico de mim
    agora viajo-me subúrbio.

  • Improviso para contar que regressei do Mali...

    No deserto
    o mar deve dizer-se
    como tu o dizes
    e eu que nada entendo
    do que dizes
    embora perceba tudo
    até o mar
    esse mar eternamente imutável
    na voz das mulheres
    que desertam contigo.

  • Improviso para voar sobre o atlântico...

    Não há mãos que triunfem sobre as palavras
    nem as mãos que te acordassem dessa tela
    onde quase repousas
    não há mãos nem chicotes nem algemas
    o teu corpo pede agora viagens imateriais
    exige o cárcere sem grades
    suplica evidências que neguem a superfície do espelho
    já quase obedeces apenas a ti própria
    um pouco mais de submissão e
    poderás conceder-te finalmente a liberdade
    de voares nas minhas asas.

  • Telegramando...

    Não me esperes do outro lado da sebe stop
    Não me obrigues a saltar sobre o muro
    que posso cair e partir a bússola stop
    Vem ao meu encontro procura-me stop
    Estarei onde tu quiseres stop
    e trarei comigo um sinal de luz
    nos olhos cansados mas ainda abertos stop
    para que me distingas na noite stop
    no cinzento baço da penumbra dos bosques
    por entre os pirilampos stop

    Publicado em “Descansando do Futuro – Reserva de Intimidade”, Edições Asa, 2003
  • Improviso para dizer a eterna natureza masculina...

    Sim claro
    os preservativos
    não me esqueci dos preservativos
    nem tão pouco dos acessórios
    para os preliminares
    Álvaro de Campos
    Herberto Helder
    Almada Negreiros
    no fundo da mala
    a caderneta incompleta
    não colei ainda o teu cromo
    superstição
    reservei o hotel
    sessenta e nove estrelas
    duas camas individuais
    não vá o diabo tecê-las
    (diz lá que não rima!)
    pequeno-almoço continental
    internet
    levo pijama
    para as leituras primárias
    e o portátil
    onde guardo a ficção
    não descuides por favor a lingerie
    que pode falhar-me o tesão.

  • Improviso sobre Yamore...

    Vagueias o amor em pedaços
    repartes-te assim
    ouves quando não vês
    se perdesses os olhos
    verias com as mãos
    se as mãos não vissem
    talvez cheirassem
    e
    ainda que mutilada de todos os sentidos
    continuarias a pensar-me
    o amor tem silêncios
    que só tu ouvirás.

  • Improviso em forma de haiku para me oferecer...

    Emprestaria o corpo para realejo
    se alguma rua me quisesse
    já não tenho serventia para afinador.

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Abnóxio foi, entre 2004 e 2010, o blogue de Ademar Santos. Hoje é um site, ainda em construção, que reúne a sua poesia. É desenhado e mantido por Alexandre Santos, um dos seus filhos.