Abnóxio

Poesia de Ademar Santos - em reconstrução
Retrato de Ademar Santos feito à mesa de um café - na Brasileira ou no Moçambique -, em 1973, pelo Padre Nunes Pereira.
  • Improviso lesa-pátria...

    Tenho Portugal atravessado algures em mim
    entre o cansaço e a desilusão
    pátria género indefinido
    macho nas caravelas e fêmea
    na vaga espera de todos os solstícios
    este excesso de luz que nos cega
    esta modorra de negreiros extintos
    farsa quase milenar de mascarados
    Portugal das cenas do ódio
    e de todas as ceias de cardeais
    Portugal dos pequeninos
    e das mais belas aldeias moribundas
    em concurso de sombras
    e da padralhada de junqueiro
    arena antiga de toureiros e fadistas
    e barões ao balcão da mercearia
    Portugal também ele exausto
    quase tanto como nós.

  • Improviso sobre a gaguez do silêncio...

    Perguntas-me pelo libreto
    como se as árias que arrisco nesta descontínua partitura
    já não fossem suficientes
    para me cantar
    digo-te
    não tenho a paciência interior
    dos maratonistas da alma
    continuo fechado no quarto da infância
    entre dicionários cromos e legos
    a minha mãe ainda bate à porta
    e zanga-se com a chave por dentro
    continuo a improvisar os medos da infância
    já escrevi e reescrevo aqui
    hei-de morrer de inibições
    ainda que te desiludas
    negar-me-ei sempre o libreto
    talvez eu sofra
    de uma patologia estranha e quase arcaica
    este silêncio sôfrego
    e tantas vezes gaguejante.

  • Improviso quase musical...

    Não tenho batuta nem maestro que me dirija
    quando as palavras descendo pelas mãos
    me instrumentam
    toco-me de ouvido
    eu próprio sou a partitura das notas
    que fixam os silêncios do meu corpo
    que falam
    viajo numa galáxia de vozes
    entre mim e todos os outros.

  • Improviso sobre o regresso...

    Com a alma de inverno
    fui procurar-me na primavera e voltei
    os olhos perfumados de camélias altivas
    e as mãos nervosamente suspensas
    sobre o tacto prometido
    não sou predestinável a viagens impossíveis
    tenho o treino e a teimosia dos navegadores solitários
    que nunca recuam
    perante os mais íntimos horizontes do medo.

  • Improviso sobre um abandono de camélias...

    Tenho um quintal
    plantado na saudade da infância
    a que subia por uma estreita escada de granito
    sofridamente talhada numa vertente de séculos
    era lá que eu me esculpia solitário
    entre nomes de coisas que pareciam sorrir
    à lógica ainda refractária do meu entendimento
    eu não sabia ainda de fronteiras marítimas
    nem de caravelas galopantes
    mas todos os meus sentidos costumavam dialogar em segredo
    com o mistério das formas que me renasciam
    interrogando a luz e o cheiro
    daquelas corolas que a minha mãe
    dizia exiladas do oriente
    só muito mais tarde compreendi que as japoneiras
    precisavam do silêncio dos meus olhos
    para florir neste inverno.

  • Improviso sobre a ruptura...

    Sou um novelo de palavras
    não sei onde me termino
    evito os pontos finais
    porque o futuro pode sempre começar
    numa recusa
    entre frases que não cheguei a ligar
    um gesto suspenso sobre o pântano
    uma rosa que não completou o feitiço
    um livro que não saiu do cais
    dos segredos impartilháveis
    sou um novelo de palavras
    e vivo enredado em mim
    à espera talvez de um milagre
    a derradeira metamorfose
    o regresso à fonte de todos os inícios.

  • Improviso ao jeito de Alexandre O’Neill...

    Projectei o poema
    a partir de quatro metáforas de garantida originalidade
    todas elas tão pessoais
    e intransmissíveis
    (supus)
    que seria improvável
    para não dizer impossível
    que alguém as tivesse usado antes
    com as quatro metáforas
    empreitei o poema
    depois comovi-me ao espelho
    (se o poema não comove o autor
    é um poema falhado)
    e
    orgulhoso da obra prima
    partilhei-a com o patologista de serviço
    à urgência das literaturas
    o diagnóstico foi fulminante
    nenhuma das metáforas era original
    e o poema não passava de um remendo trôpego
    de alarvidades
    sujeito-me agora
    à expiação do copista intalentado
    confesso e assino por baixo
    esgotei o baú das metáforas
    sobra-me apenas um destino honroso
    mudar de ramo
    (literário).

  • Improviso quase poético em forma de brinquedo...

    Nem sempre o caminho
    é voltar para trás
    há esquinas em que apetece
    enganar o destino
    e seguir numa paralela
    há poemas assim como crianças
    escondidas debaixo da cama
    para não serem vistas
    eu tenho uma cama de pregos
    por cima das palavras
    em que me escondo.

  • Testamento apócrifo de Alexandre Magno, rei da Macedónia...

    De Aristóteles aprendi
    que a natureza de cada um
    é a sua máxima autoridade
    e por isso a minha ambição
    não se deteve diante de nenhuma fronteira
    a eternidade que escutei em cada batalha
    foi a única medida da razão
    que a mim próprio me impus
    persegui apenas um sonho
    e a esse sonho sacrifiquei tudo e todos
    menos a vaidade da grandeza que me prometera
    não poupei traições nem desconfianças
    mas fui magnânimo
    com todos os cronistas de aquém e de além-mar
    e os vencidos que se ofereceram à vassalagem
    em troca do perdão
    não vacilei diante dos inimigos
    nem temi confrontos desiguais
    e aceitei o preço mais alto da solidão
    porque esse é o destino impartilhável
    dos inventores de futuro
    o poder construí-o sobre o mito da invencibilidade
    e nem na morte abdiquei dele
    digo
    de mim
    herança intransmissível
    para que ninguém o diminuísse
    o meu sonho teria que morrer comigo.

  • Improviso para desaprender o futuro...

    Já nada peço ao espelho
    distraí-me da eternidade
    e o tempo corre agora para trás
    entre imagens em que já não me revejo
    desaprendo-me lentamente
    de me espreitar no futuro.

  • Improviso através das grades...

    Memória cela
    como fugir dela?…
    como voltar?…
    perdi a chave
    para poder entrar em mim
    e sair de mim
    sempre que quiser.

  • My moleskine...

    Parece que estamos sempre de partida
    para sítio nenhum
    viajamos incógnitos no silêncio
    entre todos os passados
    e todos os futuros
    e um dia finalmente
    abandonamo-nos a descansar
    no cais do esquecimento
    chorando um a um
    como fazem os náufragos
    todos os navios que nos adiaram.

  • Saudades de Veneza...

    Quando quero fingir de mim
    afivelo uma máscara.

  • Improviso sobre outra imagem...

    Na memória das imagens que me interrogam
    respondo-te com a antiguidade
    de um tempo que me precede
    Semicerro os olhos e desenho as tuas formas
    numa espécie de neblina pré-histórica
    Desconhecerei eternamente a idade que nos pertence.

  • Improviso sobre uma imagem...

    Aprender as mãos e os ouvidos
    aprender o gesto e o corpo
    aprender os cheiros e os sabores
    aprender o silêncio
    aprender o movimento
    aprender os sentidos do olhar
    e voltar sempre ao princípio de tudo.

  • Poema ao estilo de Serge Gainsbourg...

    Nunca disse je-teme
    (assim mesmo, à portuguesa)
    Preferi sempre a linguagem gestual
    que não consente tradutor
    (antes de me especializar em braille).

  • Escrito sobre Christmas Music from Aquitanian Monasteries (12th century)

    Moro na cidade de baixo
    esquecido do rumo de outras cidades
    Nem campos nem desertos
    É daqui que vejo tudo o que sobra para os meus olhos
    a rigorosa incontinência dos gestos das pessoas comuns
    que já não aspiram a altares na embriaguês dos desejos
    e os caminhos circulares dos que ainda procuram as pontes
    que nunca existiram
    Nem florestas nem praias
    Na cidade de baixo
    já não há vestígios das sete portas
    e a esfinge sou eu.

  • Escrito sobre o "Agnus Dei", de Frank Martin

    Há palavras que se anunciam e me despertam
    e outras que sem bater à porta entram por mim adentro
    sorrateiramente
    adoentando-me
    Sou em estado de palavras
    Não sei donde venho
    ignoro todas as origens que me transportam
    Por isso
    peço apenas hospedagem ou internamento a mim próprio
    e ofereço-me às palavras
    para sobreviver com elas.

  • Escrito sobre o Adagietto da 5ª Sinfonia de Mahler

    (interpretado por The Uri Caine Ensemble)

    Estou delicadamente construído sobre uma rede de canais
    De todas as margens que hesito
    saem pontes que me projectam para os outros lados de mim
    Distraio-me
    para perder sempre
    a última carreira do vaporetto.

  • Memória de uma voz...

    Nat King Cole

    Uma voz pode ser
    interpretando mesmo a ausência
    todo o centro de gravidade
    da nostalgia.

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Abnóxio foi, entre 2004 e 2010, o blogue de Ademar Santos. Hoje é um site, ainda em construção, que reúne a sua poesia. É desenhado e mantido por Alexandre Santos, um dos seus filhos.