Abnóxio

Poesia de Ademar Santos - em reconstrução
Retrato de Ademar Santos feito à mesa de um café - na Brasileira ou no Moçambique -, em 1973, pelo Padre Nunes Pereira.
  • Improviso para imaginar a Europa a partir do Picoto...

    Talvez da lixeira do Picoto
    ainda se veja a cidade
    antes de todas as guerras
    a ponte que um dia terá sido romana
    sobre o Guadalquivir
    ou Rialto de todas as setas
    alombando sobre o grande canal
    os olhos que mergulham para dentro
    cruzam todas as memórias
    o flamenco e as máscaras
    a certeza da porta fechada
    que se abre para a noite
    quando tu chegas e já não queres deitar-te
    e lá em baixo outro canal
    com as suas pontes de cimento
    que ninguém atravessa
    e Paris que corre entre nós
    como se lá tivéssemos vivido
    esta ausência de bússulas
    que nos viaja
    este mapa impossível
    de tantas saudades
    sem data e sem lugar
    já estivemos lá
    e perdemo-nos sempre.

  • Improviso para vigiar o teu sono...

    Nesse sonho viajas por mim
    e vais ainda mais longe
    do que já te imaginaste
    a realidade do teu desejo
    tem agora dimensões que desconhecias
    e nao há célula do teu corpo
    que me vire as costas
    como na fotografia
    o teu dicionário íntimo soletra palavras
    princesa puta escrava
    e acrescenta-lhes todos os adjectivos
    com que te fantasias
    nao há terminologia agora que te termine
    renasces sempre em todos os sonhos.

  • Improviso para conjugar o verbo pertencer...

    Os meus olhos acrescentam luminosidade ao teu corpo
    e quando entro pelas frestas do pensamento que me abres
    percebo que já somos um
    em vez de dois
    o verbo pertencer conjuga-se assim.

  • Improviso sobre Touch Me...

    Há pepinos que cheiram ainda às minhas mãos
    quando ouves comigo Touch Me
    The Doors
    lembras-te?
    aquela batida que quase se confundia com o coração
    e que só parava na espira seguinte do vinil
    digo na vida seguinte
    e as estrelas que não calavam a chuva
    naquela letra que nunca foi de poema
    come on come on come on
    now touch me baby
    e a promessa de todos os céus por azular
    e mesmo o sopro que não faltava
    não digo o instrumento
    porque nunca percebi de metais.

  • Improviso para um filho...

    Habituei-me a ser conjugado por ti
    dás-me muito mais do que a eternidade
    nas palavras e nos sons que recuperas
    para a noite
    regressarei sempre contigo
    depois de todas as madrugadas
    que inventas
    não sei se foi deus
    mas tu existes.

  • Improviso para uma leitora que esbarra na "abstracção da minha poesia...

    Quando começo a viagem do poema
    desconstruo-me sempre
    nunca sei que sentidos me esperam
    na esquina das palavras
    vou por aí
    desvendando-me
    talvez encontre algures um leitor
    que me convide para um copo
    no bar além da tal esquina
    que nunca antes atravessara
    ou talvez regresse sozinho ao espelho
    como se nem tivesse chegado a partir
    a viagem do poema
    é sempre a incógnita
    dos olhares que me acompanham
    há dias em que saio de casa
    e nem os cegos dão por mim.

  • Improviso geracional escrito sobre "Walk on by", de Isaac Hayes (1969)...

    Li Marcuse
    mas cheguei atrasado a Berkeley e a Nanterre
    comecei por acreditar em Dubcek
    mas Kafka reteve-me no aeroporto de todas as dúvidas
    e já não apanhei a tempo
    o avião para Praga
    tentei ainda Woodstock (depois de ir à Lua)
    mas a lotação estava esgotada
    e quando finalmente
    desci em Coimbra B
    até o Alberto já tinha sido mobilizado
    para a guerra colonial
    e não fui além do Easy Rider
    entre baladas de protesto
    tenho andado sempre um passo atrás
    da história que me destinaram
    mas continuo a recusar a amnésia
    com Walk on by.

  • Improviso em forma de uivo...

    Há quem se canse de latir em segredo
    outros ladram para calar o silêncio das noites
    desenhas-te na alma
    o mapa das solidões animais.

  • Improviso sobre a arte da caça...

    A pele
    arranhada dos tigres ausentes
    (ou seria a alma da mobília?)
    a floresta tem tantos silêncios felinos
    os segredos é que ainda não estão
    ao alcance de todos.

  • Improviso sobre um desenho de Almada (1)...

    Não tenho medidas para a perfeição dos corpos
    aprendi na catequese da intimidade
    que todos os corpos são imperfeitos
    porque neles projectamos sempre alguma ausência
    gestos ou formas que não casam exactamente com o desejo
    ou talvez mesmo o imperceptível o movimento
    que arranha por dentro o olhar e nos cega.

  • Improviso sobre um desenho de Almada (2)...

    Talvez não fosses tu quando mordesses
    talvez não fosses tu quando arranhasses
    talvez não fosses tu quando gemesses ou gritasses
    talvez não fosses tu quando lambesses
    talvez não fosses tu quando cheirasses
    talvez não fosses tu quando saltasses e fugisses
    talvez não fosses tu quando aninhasses
    talvez não fosse tu quando escorresses
    talvez não fosses tu quando montasses
    talvez esse animal que trazes pela coleira
    dependurado do instinto.

  • Improviso ao estilo de Manoel de Barros...

    Hei-de crescer com as silvas
    e morrer entre elas
    predestinei-me para erva daninha.

  • Improviso sobre a eutanásia...

    Não quero que me mates
    se fores capaz de entender a diferença
    pedir-te-ei simplesmente
    que me ajudes a morrer.

  • Improviso erótico...

    De vez em quando apetece-me a reciclagem
    deposito-me num contentor
    e fico à espera que me levem
    para a incineradora mais próxima
    sinto que adoeço do lixo acumulado
    depuro-me no fogo.

  • Improviso sobre um estudo de Malhoa (1)...

    Não sei se saio do teu corpo
    ou das vestes que o prolongam
    escondo-me sempre atrás do desejo
    para parecer ausente.

  • Improviso sobre um estudo de Malhoa (2)...

    A metade da mulher que eu não reconheço
    pertence à imaginação
    é a parte que brinca
    com a liquidez marítima dos meus olhos.

  • Improviso sobre um estudo de Malhoa (3)...

    Há sempre em mim
    uma criança que te espreita e procura
    regresso no fim ao princípio de tudo
    para que me acolhas e rejeites.

  • Improviso (em prosa?) sobre um acordeão esquecido...

    Há um instrumento musical em que sempre tropeço,
    quando me levam pela mão a ouvi-lo: o acordeão.
    Sento-me na soleira da porta da casa dos meus pais
    fecho os olhos para fingir de cego
    (ou fixo-os num ponto qualquer ausente em mim)
    e toco.
    Toco aquele velho e trôpego acordeão,
    enquanto as beatas de mantilha negra
    a caminho do ofício do terço (ou seria da verbena?)
    deixam a moeda distraída no chapéu virado do avesso,
    como agora a minha memória.
    Os homens não levam a mão ao bolso.
    A caridade é feminina.
    E eu continuo a tocar para ninguém
    o acordeão que me escorre dos dedos
    (ou será da alma?).
    Hei-de procurar-me lá:
    na soleira da casa onde nasci.
    Talvez me encontre
    (ou a partitura)…

  • Improviso para violoncelo e silêncio...

    Há dias em que homossexualmente me basto
    com as suites para violoncelo de
    Johann Sebastian Bach
    não preciso de mais
    para antecipar a superior e feminina
    musicalidade do silêncio que me espera
    depois da última nota.

  • Improviso sobre ninguém...

    Às escondidas eternamente dos meus pais
    venho há muitos anos do futuro
    a dançar com alguém que desconheço
    uma mulher (suspeito)
    porque só as mulheres dançam assim
    nos meus braços vazios
    é em ti que eu me projecto em movimento
    quando desejo ninguém.

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Abnóxio foi, entre 2004 e 2010, o blogue de Ademar Santos. Hoje é um site, ainda em construção, que reúne a sua poesia. É desenhado e mantido por Alexandre Santos, um dos seus filhos.