Abnóxio

Poesia de Ademar Santos - em reconstrução
Retrato de Ademar Santos feito à mesa de um café - na Brasileira ou no Moçambique -, em 1973, pelo Padre Nunes Pereira.
  • Improviso para explicar tudo ao contrário...

    A porta abre-se para o mar
    e é do mar que tu vens
    como se os teus braços fossem ondas
    e tudo afinal fizesse sentido
    nessa ausência ilíquida de formas
    um corpo suspenso sobre um horizonte
    de renúncias
    a âncora subindo de ti
    em direcção às nuvens que te esperam
    e a bússola talvez nos teus olhos
    parada exactamente nesse ponto
    em que tudo começa.

  • Improviso para dizer o cais...

    Empresto-te a mão
    apenas uma delas
    a mão de que não preciso
    para escrever que não há rostos perfeitos
    destinos escritos a fogo
    na intensidade dos olhares
    uma voz uma pronúncia
    e o sangue que corre
    por fora de nós
    entrando nessa corrente universal
    que aproxima e afasta os corpos
    que se aguardam no cais
    agora já posso desembarcar nos teus silêncios
    tocar a imagem
    segredar-te ao ouvido os versos
    que tu seguramente completarás
    como se sempre tivesses adivinhado
    as saudades que esperavam
    os lábios entreabertos
    o sorriso suspenso
    e o mais que não vejo
    talvez essa íntima fracção
    de uma vontade de regresso
    que esvoaça imperceptivelmente dos olhos.

  • Improviso para violino, guitarra e medo...

    Seria talvez
    o último encore
    ou o primeiro de todos
    mas tu não quiseste arriscá-lo
    trocaste o violino pelo medo
    e falhaste uma vez mais a partitura.

  • Improviso sobre Diabaté...

    Vivemos em corpos trocados
    agora fechamos os olhos para não vermos
    há uma fronteira de invisualidade
    que ao mesmo tempo nos separa e aproxima
    cegámos o desejo
    e agora tacteamo-nos.

  • Improviso para aliviar ausências...

    Nunca aprendi a dizer
    adeus
    destituí-me para renúncias
    herdei talvez
    de minha mãe
    esta incapacidade
    a morte
    que se sentava sempre à mesa
    e entretinha as ausências
    e eu que comia depressa
    para não ouvir
    a única janela era interior
    e abria para a cozinha
    donde vinham todos os cheiros
    e todas as vozes
    que transgrediam o silêncio
    a infância
    naquele tempo
    em que ninguém se despedia
    e todos voltavam
    a memória das pessoas
    parecia fazer parte delas
    não havia palavras
    para ensinar o esquecimento.

  • Improviso para antecipar o caminho inverso...

    Ei-lo
    o homem
    exactamente à medida da tua paixão
    medida de todas as paixões
    o primeiro
    que riu contigo
    que disse talvez que eras única
    que te serviu a vida
    numa girândola de ilusões
    ei-lo
    uma vez mais
    adolescendo contigo
    inventando madrugadas
    que jogam a tua ausência
    um dia regressarás a ti
    pelo caminho inverso.

  • Improviso para adormecer pássaros...

    Com a simplicidade dos crentes
    contaram-me hoje
    que alguém
    por amor
    fingiu deixar de amar quem amava
    só para que a gaiola se abrisse
    e o pássaro aprisionado
    finalmente pudesse voar
    em direcção à gaiola que
    por direito da paixão
    julgava pertencer-lhe
    estórias
    que a literatura inventa.

  • Improviso para explicar que a poesia deve ser outra coisa...

    Depois da morte
    a vida deve ter mais
    do que intervalos
    entre as ausências
    perguntas-me se aguento
    e eu respondo
    que tentarei
    não saberia sequer dizer-te
    o que espero
    ou mesmo se espero
    este intervalo
    já faz parte de mim
    sou uma saudade do que fui
    talvez a mesma saudade
    que te leva a perguntar-me
    se aguento
    pudesse eu saber
    o quê.

  • Improviso sobre uma ária de J.S.Bach...

    Que os meus olhos sempre despertos
    só adormecessem por dentro dos teus
    que as nossas mãos
    não errassem as cordas da guitarra nem a partitura
    que não houvesse mais corpo entre nós
    para além do pensamento
    e que até as palavras perdessem
    a noção do tempo
    que tudo
    fosse simples delicado e perfeito
    como nesta ária de Bach
    uma nudez de saudades
    um silêncio de lágrimas
    a eternidade cantada assim
    num sorriso sem data.

  • Improviso para segredar ao ouvido...

    Há segredos
    que eu não dispo para ninguém
    senão para ti
    que vives dentro deles
    como numa espécie de concha da alma
    seria inútil negar-te o que sabes
    porque sempre o soubeste
    mesmo antes de mim.

  • Improviso sobre “Caro mio ben”, de Giordani...

    Cecilia
    no Teatro Olímpico
    de Vicenza
    cantando apenas para nós
    (ficaste com as fotografias)
    Caro mio ben
    de Giuseppe Giordani
    credimi almen
    senza di te
    languisce il cor
    a voz no palco de todas as máscaras
    as estátuas espreitando-nos
    a antiguidade ali tão perto de nós
    e tu subindo e descendo os degraus
    à procura do ângulo que falha sempre
    il tuo fedel
    sospira ognor
    cessa crudel
    tanto rigor
    caro mio ben
    Cecilia Bartoli
    Agosto de 2003
    (digo: Junho de 1998).

  • Improviso para violino imaginário...

    Se ainda te lembras
    foi em Salò
    o berço de Gaspare
    junto à Piazza Duomo
    que comprei
    Il Trillo del Diavolo
    que agora ouço
    tentaste explicar-me a minudência técnica
    mas eu não percebi
    faltava nas tuas mãos
    talvez para a dança da vida breve de Falla
    (a aula prática)
    um violino
    sobrava-nos antes a imaginação de Pier Paolo Pasolini
    para todo o horror dos 120 dias de Sodoma
    que nos levara àquelas margens tardias do Garda
    ainda voltámos a Salò
    mas já não a tempo de reescrever a história
    a nossa.

  • Improviso para distrair o abandono...

    Não há segredos
    para explicar o regresso
    a vertigem do eterno retorno
    a nostalgia
    transporta-nos sempre aos embalos iniciais
    como se apenas no passado
    de todos os abandonos
    pudéssemos ainda encontrar algum conforto
    para o próprio abandono.

  • Improviso para dois cravos e todas as cordas...

    Ouve
    hoje descobri no fundo de mim
    uma lágrima
    aproveitei para chorar
    inadvertidamente
    sobre os vinis em terceira ou quarta mão
    que um dia me trouxeste das Canárias
    a agulha tropeça como eu nas espiras
    como se o andante do concerto de Bach tardasse
    em dó menor para dois cravos
    BWV 1062
    ainda há gemidos que eu ouço
    no sofá ao fundo da sala
    quando tiravas os óculos
    para não veres que era eu
    nunca me explicaste
    por que eram precisos tantos dedos
    para tocar um instrumento tão delicado
    Gustav Leonhardt.

  • Improviso em forma de arquipélago...

    Esperaste comigo
    tempo de mais
    ou o tempo indispensável
    eu era apenas um aeroporto periférico
    donde talvez deixassem um dia de partir
    (acreditaste)
    os aviões para os Açores
    um daqueles aeroportos em que só pousamos
    por razões de escala
    as molduras servem para todos os retratos
    mas há retratos que não cabem
    na única moldura que somos
    sempre te disse (lembras-te?)
    que há viagens que eternamente adolescemos
    eu era apenas um berço tardio
    a mais longínqua e inabitável de todas as ilhas.

  • Improviso para uma leitora...

    Quando todas as vozes
    forem uma
    regressarei ao cantochão
    para morrer.

  • Improviso para dizer por que fico...

    Há viagens
    que o meu corpo já não suporta
    viagens à volta de mim
    comigo ausente
    viagens
    por onde nunca serei
    o meu corpo
    exige-me agora raízes
    para voar.

  • Improviso sobre a mentira...

    A mentira
    é uma aprendizagem
    aprendi a mentir
    no confessionário
    diante de uma sombra
    que me interrogava
    em nome de um deus fardado
    eu confessava espontaneamente
    todos os pecados
    que ele esperava
    os pecados do corpo
    e até os pecados da alma
    tudo a preto-e-branco
    e sem genérico ou legendas
    cinema mudo para cegos
    foi assim
    entre perfis de altares vazios
    que eu aprendi a mentir
    a mim próprio
    pecado
    de todos o mais capital.

  • Improviso para Bach (ou para ti)...

    Se entrasses agora
    por aquela porta
    ouvirias Bach
    serias Bach
    e eu continuaria a desfolhar em vão
    a partitura
    atento apenas às tuas mãos
    vazias sempre de teclas.

  • Improviso para Brecht... *

    Brecht
    meu cúmplice de tantos dramas
    a guerra por aqui
    está pela hora do nosso inimigo de sempre
    degrada-se o armamento
    com o excesso de uso
    e os projécteis
    já não matam como outrora
    inquieta-me todo este desperdício
    hoje dispara-se à toa
    falta treino de poupança
    aos generais
    o crédito sopra a indústria da morte
    e a morte coitada
    faz horas extraordinárias
    para abastecer o mercado
    mas a guerra não pára
    a guerra não pára
    e os orçamentos não chegam
    para pagar tanta guerra
    acabaremos todos nos braços da banca
    essa puta inefável.

    * A imagem que ilustra o “improviso” reproduz uma litografia de Mabel Dwight.
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Abnóxio foi, entre 2004 e 2010, o blogue de Ademar Santos. Hoje é um site, ainda em construção, que reúne a sua poesia. É desenhado e mantido por Alexandre Santos, um dos seus filhos.